terça-feira, janeiro 15, 2002

Millôr Fernandes para Fumantes

Resgatei esse texto de um email que a Akasha me mandou. Muito legal


"INTRAGÁVEL!", UMA CRÔNICA DE MILLÔR FERNANDES

Vocês estão bem lembrados que, bem no meio do paraíso, tinha uma árvore. Belíssima. Ninguém sabe por que Deus a chamou de Árvore da (cons)Ciência do Bem e do Mal. Coisas de Deus. Não tem que dar explicações. E ainda tonitroou: "Vocês todos(!) aí! Se tocarem nos frutos dessa árvore perdem a moradia toda com vista de frente, perdem o dolce far niente. Vão ter que morar a Leste do Éden, e ganhar o pão com o suor do seu rosto".
Agora, me diz aqui; por que proibir? Que mal faria ao meio ambiente aqueles dois desgraçados comerem a porcaria de uma maçã, o mais insípido dos frutos insípidos? Mas, proibido, o ato, antes inócuo, virou crime, com conseqüências que chegaram até hoje: pegaram o Clinton desprevenido, de braguilha aberta, uma Bíblia numa mão, digam-me o quê na outra.

Repito; o que faz o crime é a legislação.

Quando legislou, do Monte dos Sinais (início da informática); "Não matarás, respeitarás pai e mãe, não roubarás, não cobiçarás a mulher do próximo, não prestarás falso testemunho", Moisés cerceou atos que todos praticavam sem que o mundo deixasse de girar. Roubar, matar, estuprar as sobrinhas, sacanear os outros, são coisas inerentes ao ser humano. Se o mundo tivesse respeitado Moisés, teria se tornado de uma chatura insuportável. Já imaginaram, um mundo sem enredo?

Quem salvou os prevaricadores e a humanidade foi um apóstolo matreiro que acrescentou um mandamento aos dez iniciais: "Faz. Mas não seja apanhado".

Mas hoje, 2000, o mundo está definitivamente a perigo. O país lá de cima, que dita as leis ao mundo, a cada dia impõe uma nova: não chamarás preto de preto, não dirás que velho é caquético, não darás lugar no ônibus a uma mulher, não olharás as coxas da secretária, usarás cinto de cegorança, só comerás hambúrgueres do McDonald, e NÃO FUMARÁS!

Quantas bésteira!, como dizia o velho e sábio italiano amigo meu.

Por que, de repente, o fumo caiu em desgraça? Inventado pelos "índios", desde a cura da folha até o produto final, foi rapidamente assimilado pelo mundo "civilizado". Apenas 21 dias depois de Colombo ter inventado a América, o famoso Bartolomé de las Casas escrevia pra Sevilha: "Após fumar esses tabacos, os índios não sentem mais qualquer fadiga". Um barato. De barato passou a milagroso. Curava desde verrugas até dor de cabeça, indigestão, gota, crises de depressão. Por isso -ou por aquilo- o fumo, em suas várias formas: o cachimbo, o charuto, o rapé (que o Aurélio diz que é feminino, eu, hein?), e sobretudo o cigarro, dominaram o mundo.

Mas, agora, depois que o sexo, nojentamente explorado pelo merchandising (virou tudo putaria), saiu de moda, as campanhas antifumo, patrocinadas por legisladores puxa-sacos de moralistas, por executivos buscando aumento de arrecadação, e pela mídia que nunca sabe onde pisa (ainda não concluí se nós, da imprensa, somos mais prepotentes ou mais tolos. Vou pensar nisso), elegeram o fumo como bode aspiratório.

E proíbe-se fumar nos aviões, nos hospitais, restaurantes, acho que até na cama dos motéis. Os anúncios de cigarros vêm com ameaças terríveis "Sua Majestade avisa que esse negócio mata! Dá câncer no pâncreas, no fígado, no pulmão, na sola do sapato. Em uma semana você terá úlcera, em duas o rompimento das coronárias, em três será atropelado, no mesmo dia perderá tudo na bolsa e ficará cego.

Se mulher, e grávida, seus filhos nascerão defeituosos, e na própria maternidade seu marido a abandonará de forma abjeta. Se homem, mais de dois maços por dia trarão, fatalmente, a impotência. Mais de quatro, sem perdão!, o homossexualismo. Tá, concordamos com tudo. Mas, me diz aí, ninguém mais se lembra dos benefícios do tabaco? Não existe vício (?) mais cômodo e mais à mão, excetuando a masturbação.

Todos o levam no bolso ou na bolsa. Bastante econômico - fuma-se uma unidade padrão de cada vez, em tempo razoavelmente lento. Os biriteiros usam copo, de tamanho variável, e a velocidade de absorção só depende da avidez do usuário. Fumante não briga, nem diz palavrão. Além disso, o cigarro é o complemento da refeição, e do ato sexual -aquele um depois da uma -, e assegurador, enquanto se espera na ante-sala do poderoso.

Intrigado, andei pesquisando. E descobri que há, entre os fumantes, uma crescente reação favorável ao tabagismo. Os fumantes concordam até que fumo é um vício idiota. Mas persistem em fumar porque têm uma virtude ainda mais idiota - a da liberdade. Querem provar que nem só de pão, e de vida higiênica, e de saúde, vive o ser humano. Além, e através do fumo, o fumante aspira a gastar sua vida como bem entende.

Arruinando conscientemente seu corpo - um ato de loucura -, o fumante ultrapassa a pura e simples animalidade da sobrevivência sem graça.
EM TEMPO: EU NÃO FUMO.


É só isso

Calliope, que fuma mas está tentando parar. O motivo não pode ser publicado (ainda), mas acreditem que não é nada que comece com "O ministério da saúde adverte..."

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